CATEQUESE DO 5º DOMINGO DA QUARESMA
“Não matarás. Religião e Cultura na promoção da vida”
1. “Não matarás” (Ex. 20,13), é um mandamento primordial, gravado no coração do homem e enunciado no código da Aliança, na Lei mosaica que codifica valores éticos fundamentais, presentes na consciência da humanidade desde o início. O homicídio é severamente verberado na Lei de Moisés (cf. Ex. 21,12-17).
A narração do assassinato de Abel por seu irmão Caim, no Livro do Génesis, mostra como esta exigência moral de respeitar a vida dos outros, faz parte integrante das mais antigas tradições culturais da humanidade; mas diz-nos também que, desde o início, este drama existe. A história da humanidade é atravessada por essa dialéctica dramática, em que a convivência entre os seres humanos tanto se pode exprimir na alegria da inter-ajuda e da fraternidade, como cair na violência em que um homem mata o seu semelhante.
O texto do Génesis, em que Deus pede contas a Caim pela vida de Abel, abre para o fundamento moral do respeito pela vida dos outros: cada homem é responsável pela vida do seu semelhante, perspectiva que Caim rejeita, porque matou: “Acaso sou o guarda do meu irmão?” (Gen. 4,9). Esta é a perspectiva que mais tarde desabrochará na Aliança e no mandamento do amor. O ser humano descobre a vida, convivendo e ajudando os outros a viver. Para Deus, Caim era responsável pela vida do seu irmão. Cada um de nós pode ajudar os outros a viver; todos precisamos que nos ajudem a viver. Esta é uma visão da vida que só pode encontrar a sua plena realização no amor. Matar é a mais radical expressão da negação do amor. São João di-lo-á claramente: “Todo aquele que odeia o seu irmão, é um homicida” (1Jo. 3,15).
Pode-se matar por ódio, mas também por egoísmo. Também aqui se contrapõem duas visões opostas do ser humano: a da inter-relação pessoal, segundo a qual a vida é para ser vivida de mãos dadas, na alegria da fraternidade, ou a da perspectiva individual da vida, em que os outros podem ser esquecidos, prejudicados ou anulados, quando não servem os interesses dos indivíduos. A maneira de conceber a própria vida e a vida dos outros é fortemente influenciada pela cultura. Há culturas de vida e culturas de morte. O cristianismo, no seu diálogo com a cultura, só pode propor uma cultura da vida, que leve ao respeito pela dignidade de cada ser humano e desabroche numa civilização do amor.
2. A compreensão, o respeito e o serviço da vida, são um problema perene na constituição e evolução das culturas, onde houve, ao longo dos séculos, progressos e retrocessos. As culturas deparam-se, antes de mais, com a dimensão misteriosa da vida. Esta intui-se, deseja-se, descobre-se vivendo, sobretudo vivendo com os outros, mas não se domina. As religiões, elemento importante no caldear das culturas, exprimiram essa dimensão misteriosa da vida, afirmando Deus como fonte e destino da vida. Antes de ser projecto dos homens, toda a vida é um projecto de Deus. A sabedoria é compreensão dessa natureza misteriosa da vida (cf. Sap. 10,3).
Aceite como dom, a vida revela-se como projecto, que é desafio de liberdade. A realização desse projecto só é possível numa inter-acção corresponsável entre pessoas individuais e a sociedade-comunidade. Cada um é responsável pela sua própria vida, mas precisa que a sociedade o ajude, proteja e defenda. Os enquadramento religioso e social da promoção da vida interpenetram-se e completam-se, ambos contribuindo para uma cultura da vida. Só esta veicula as exigências éticas e inspira o quadro legal de promoção e protecção da vida.
Nesta cultura da vida há dois aspectos complementares, mas distinguíveis: a defesa e protecção física da vida, e a promoção de todas as expressões que permitam ao ser humano desenvolver a sua vida, como projecto pessoal e inconfundível, como são a educação, a promoção da saúde e o enquadramento da criatividade de cada ser livre.
Temos de reconhecer que, embora com avanços e retrocessos, ao longo da história da humanidade se tem progredido positivamente no aprofundamento desta cultura da vida, o que fundamenta um optimismo realista acerca da humanidade, que pode marcar positivamente todas as lutas pela vida.
No que à defesa física da vida diz respeito, a consciência colectiva dos povos tem evoluído na linha de considerar a vida um bem primordial e fundamental, pelo que nenhum ser humano tem o direito de atentar contra a vida física de outro ser humano. Já vimos, na história de Caim e Abel, que a humanidade se confronta, desde o início, com o drama da violência assassina. Esta é um drama que a humanidade ainda não venceu completamente, embora a sociedade tenha evoluído na linha da consciência da sua ilegitimidade criminosa. Ultrapassou-se legalmente o labéu da escravatura, verberou-se a depuração étnica, protegeram-se os mais débeis, regulamentou-se a guerra justa. Há, no entanto, pontos de grande perplexidade nesta cultura da vida: têm os Estados, em alguma circunstância, direitos sobre a vida de outrem? A guerra preventiva poderá, alguma vez, ter justificação legal e moral? Poder-se-á aceitar ligeiramente o sacrifício de vítimas inocentes em operações militares usadas como caminho para resolver problemas políticos?
É, sobretudo, o início e o fim da vida humana que geram, hoje, as principais perplexidades culturais e legais. Em que momento se inicia a vida humana e o ser humano começa a ser sujeito de direitos, entre os quais o de ser protegido pela sociedade e pelo Estado? Pode o Estado legalizar o suicídio voluntário nos momentos terminais? Quais são os limites que a ética impõe à ciência na sua capacidade de intervir no código genético, ou de gerar a vida humana em laboratório?
No campo positivo da promoção da vida têm-se feito progressos enormes: basta pensar nas ciências e práticas educativas, na promoção da saúde, na protecção às crianças desprotegidas, aos anciãos, aos toxicodependentes, aos sem abrigo. Perspectiva cultural ainda precária nos resultados conseguidos, mas positiva no horizonte de valorização da vida que promove. A Igreja, cuja visão da vida é inspirada pela fé e se baseia na revelação, constitui uma interpelação contínua ao aprofundamento desta cultura da vida.
O Deus Vivo é a fonte da Vida
3. O Deus de Israel é um “Deus Vivo”. É esta certeza que anima os israelitas a entrarem na terra prometida: “nisto reconheceis que um Deus Vivo está no meio de vós”, diz-lhes Josué antes de atravessarem o Jordão (Jos. 3,10). E a Moisés Deus diz: “Eu perdoo-lhes, como tu disseste. Mas Eu sou vivo e a glória de Yahwé enche toda a terra” (Num. 14,20-21). Esta consciência de que plenamente Vivo só Deus o é, leva os israelitas a considerarem a vida humana como uma participação na vida de Deus. O homem vive porque recebeu de Deus um sopro de vida (cf. Gen. 2,7); é a própria imagem de Deus (cf. Gen. 1,27).
O homem, desde o primeiro momento em que recebeu esse sopro divino, que o fez viver, depende dele durante todo o percurso da sua vida. O salmista exclama: “Se escondes o Teu rosto, eles assustam-se; se retiras o Teu sopro, expiram e voltam ao pó da terra” (Ps. 104,29).
A fé de Israel no “Deus Vivo” torna-se, progressivamente, a chave da compreensão da vida. Deus afirma-se como a fonte “de água viva” (Jer. 2,13) ou, simplesmente, a “fonte da vida”: “Em Ti está a fonte da vida, pela Tua luz nós vemos a luz” (Ps. 36,10). Por isso procurar a vida é sinónimo de procurar Yahwé: “Assim fala Yahwé à Casa de Israel. Procurai-Me e vivereis” (Am. 5,4).
Esta compreensão da vida humana como participação da vida divina radicaliza-se no cristianismo e na união dos cristãos a Cristo ressuscitado, o verdadeiramente Vivo e plenitude da vida. A vida plena, que só existia em Deus, exprime-se agora na plenitude de um Homem, o Verbo de Deus encarnado. Viver é receber a vida de Jesus Cristo, que afirma ser Ele próprio a Vida (cf. Jo. 14,5), que pode e quer distribuir: “Eu vim para que as ovelhas tenham vida e a tenham em abundância” (Jo. 10,10). Os primeiros cristãos chamam-Lhe o “Príncipe da Vida” (Act. 3,15) e anunciar essa vida é o objectivo da missão da Igreja (cf. Act. 5,20). A Eucaristia, onde se nos dá no Seu Corpo morto e ressuscitado, é chamada o “pão da vida”. Como Ele vive no Pai, assim Ele dá aos que comem o Seu Corpo e bebem o Seu Sangue, a possibilidade de viverem n’Ele (cf. Jo. 6,27-28).
Aquele sopro divino de vida, que fez viver o primeiro homem, é agora o Espírito Santo, “Espírito de vida”, infundido por Cristo nos nossos corações, que nos faz viver em Cristo, única verdadeira garantia da vida em plenitude, como ensina Paulo aos Romanos: “E se o Espírito d’Aquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Aquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos dará também a vida aos vossos corpos mortais pelo Seu Espírito que habita em vós” (Rom. 8,11).
A vida é um mistério
4. Esta visão bíblica da vida, base da nossa cultura, afirma a vida como um mistério, que o próprio homem vivo não domina, nem compreende completamente, que deve fruir e cultivar, mas respeitar com reverência. Estar vivo é a primeira expressão da relação do homem com Deus e da semente do divino que existe em toda a vida humana.
Já na primeira narração da Criação, diz-se que Deus colocou o homem recém-criado num jardim, que simbolizava a harmonia de todo o Universo criado, orientado para que o homem viva. O homem podia exercer o seu domínio sobre todas as coisas, excepto sobre a “árvore da vida”, a “árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gen. 1,16-17). Essa árvore encerrava o mistério da vida, a única sobre a qual o homem não podia exercer o seu domínio. Só Deus guardava o segredo da vida. Quando o homem ousou exercer o domínio do seu poder e da sua liberdade sobre a “árvore da vida”, pecou, sendo esse o verdadeiro pecado do homem: querer exercer o seu poder sobre o mistério da vida. E as consequências foram dramáticas: Caim matou Abel e continuaram a sê-lo, ao longo dos séculos, até aos nossos dias. Sempre que o homem atenta contra a vida de outro ser humano, compromete-se a harmonia da humanidade, a violência toma o lugar do respeito e do amor, não percebendo que quem mata compromete a sua própria vida. O único poder que a liberdade do homem tem sobre a vida, a sua e a dos outros, é acolhê-la, cultivá-la e desenvolvê-la, desvendar-lhe os segredos para lhe captar o mistério.
Realidade multifacetada, corpo e espírito, viver e fazer viver é, desde o início, um desafio à generosidade e à coragem. A luta em favor da vida foi, desde sempre, um combate moral, o verdadeiro confronto entre o bem e o mal. E desde o início, neste combate pela vida, houve momentos altos em que sobressai a grandeza do amor, dos que dão a sua vida para que os outros vivam, e momentos dramáticos em que os homens se matam uns aos outros. E o combate não terminou. Os cristãos são chamados, como protagonistas da história, a corporizarem esses momentos altos do respeito pela vida, na generosidade e na coragem, continuando a afirmar a verdadeira grandeza do mistério da vida e a não desanimarem porque, a seu lado, há quem continue a matar o seu irmão. Em todas as lutas pela vida reactualiza-se o drama da história humana, cujo sentido último continua ligado ao respeito ou desrespeito que se tiver perante a vida, a própria e a dos outros.
O amor é a única resposta válida às exigências da vida
5. Perante as exigências da vida percebe-se o sentido da afirmação do Apóstolo Paulo: “A Caridade é a plenitude da Lei”. Ser fiel à vida, na plenitude das suas expressões, é procurar a verdade e a justiça, é reconhecer-se e conhecer os outros, é perceber que a vida é uma incógnita e uma surpresa, que as suas expressões espirituais, da ordem da relação e do amor é que dão sentido à sua dimensão física, é aceitar ajudar e lutar por uma vida que valha a pena, é não causar “qualquer dano, a si mesmo ou ao próximo”.
A Lei de Deus acerca da vida não se reduz ao não matarás o corpo. É uma exigência de respeito por todas as capacidades de vida. Quantas vezes, mesmo sem tirar a vida do corpo, se agridem e se matam, em nós e nos outros, outras expressões de vida. O próprio conceito de morte não se reduz à morte física. O egoísmo é, tantas vezes, a principal expressão de morte, a toldar a exigência e a beleza da vida.
O facto de a vida ser recebida, faz com que a sua principal expressão seja o dom, para que os outros vivam. Viver só pode ser um percurso de generosidade. O próprio Jesus ensina aos discípulos que quem quiser ganhar a vida, tem de aceitar perdê-la (cf. Mt. 16,25), e que não há maior prova de amor do que dar a vida por aqueles que se amam (cf. Jo. 15,13). É certo que o “não matarás” é, ainda hoje, uma batalha a travar, contra a violência mortífera, para impedir uma falsa tolerância perante as agressões à vida física, para evitar leis que regulam as condições em que se pode matar. E nós os cristãos, para quem a vida é um mistério recebido de Deus, temos de estar na primeira linha desses combates. Mas empenhar-se neles é sempre um compromisso com a vida, a decisão de nos empenharmos em defender e promover a vida, em todas as suas expressões. É preciso que o nosso testemunho seja claro: somos sempre e em tudo a favor da vida. Mesmo quando somos contra, é porque somos a favor. Quase sempre há muito sofrimento a envolver as circunstâncias que levam a atentar contra a vida. Estejamos presentes no sofrimento dos irmãos e não apenas na condenação da morte. A vida é a primeira concretização do mandamento da caridade: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
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