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quinta-feira, 10 de abril de 2014

CATEQUESE DO 3º DOMINGO DA QUARESMA


CATEQUESE DO 3º DOMINGO DA QUARESMA
“A fantasia da caridade: evangelização e predilecção pelos pobres”

1. A clareza com que o Novo Testamento afirma que toda a Lei se resume a um único mandamento, o amor a Deus e o amor ao próximo, não só apresenta a caridade como plenitude da Lei, mas afirma-a como prioridade absoluta na vida de cada cristão e da Igreja como Povo do Senhor. A caridade é prioridade existencial e pastoral. Como diz o Santo Padre na sua recente Encíclica, “toda a actividade da Igreja é manifestação dum amor que procura o bem integral do homem. Procura a sua evangelização através da Palavra e dos sacramentos (…); procura a sua promoção nos vários âmbitos da vida e da actividade humana”[1].

A caridade preside a toda a vida dos cristãos, exprimindo-se em todas as suas concretizações; ela é a garantia e o fundamento da fidelidade cristã.

Esta prioridade da caridade está expressa em todos os outros mandamentos: a adoração de Deus, dando-Lhe em tudo a glória devida ao Seu Santo Nome; a família concebida como comunhão de amor; a vivência da sexualidade humana enquanto dinamismo de amor e dom, e o seu crescimento, através da virtude da castidade, até ser fonte de amor gratuito e generoso (ágape); o uso dos bens materiais, guiado pelas exigências do amor fraterno; os direitos absolutos da verdade e a exclusão da mentira nas relações humanas e na abordagem da realidade. Apenas alguns destes aspectos serão tema das catequeses dos domingos seguintes.

Esta prioridade absoluta da caridade na vida pessoal do cristão, é já claramente afirmada nas cartas do Apóstolo Paulo. Perante as exigências da caridade, não apenas se relativizam as diferenças humanas, mas ela gera todas as atitudes que identificam o modo cristão de viver. “Com efeito, em Cristo Jesus, não contam nem a circuncisão, nem a incircunscisão, mas apenas a fé, operante na caridade” (Gal. 5,6). E acrescenta a seguir: “O fruto do Espírito é a caridade, a alegria, a paz, a paciência, a bondade, a benevolência, a fé, a mansidão e o domínio de si. Contra estas coisas não existe lei” (Gal. 5,22).

Mas a caridade preside a toda a acção pastoral da Igreja como Povo do Senhor e Corpo de Cristo. João Paulo II afirmara que Jesus Cristo é o programa pastoral da Igreja[2]. E Bento XVI, na sua recente Encíclica, afirma: “A natureza íntima da Igreja exprime-se num tríplice dever: anúncio da Palavra de Deus (kerygma-martyria), celebração dos Sacramentos (leiturgia), serviço da caridade (diakonia). São deveres que se reclamam mutuamente, não podendo um ser separado dos outros. Para a Igreja, a caridade não é uma espécie de actividade de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à natureza, é expressão irrenunciável, da sua própria essência”[3].

Daqui podemos concluir que a caridade é o programa pastoral da Igreja.

A natureza sobrenatural da caridade

2. A caridade não se confunde nem se reduz à filantropia. É um grau de amor em que o cristão participa do próprio amor de Jesus Cristo, fruto da união com Ele, realizada no baptismo e actuada pelo Espírito Santo, dom pascal por excelência aos que acreditaram na ressurreição de Jesus e, pelo baptismo, mergulharam no mistério da Sua morte.

O Santo Padre afirma na Encíclica: “O Espírito é a força interior que harmoniza os seus corações com o coração de Cristo e os leva a amar os irmãos como Ele os amou, quando se inclinou para lavar os pés dos discípulos (cf. Jo. 13,1; 15,13) e, sobretudo, quando deu a Sua vida por todos (cf. Jo. 13,1; 15,13).

O Espírito é também força que transforma o coração da comunidade eclesial, para ser, no mundo, testemunha do amor do Pai, que quer fazer da humanidade uma única família, no Seu Filho”[4]. Fruto por excelência da Páscoa de Cristo, a caridade como amor dos irmãos e entre irmãos, brota, como dom e exigência, da celebração da Eucaristia. Aí a Igreja ama a Deus, participando do amor do Filho para com o Pai, aprofunda a comunhão de amor entre os seus membros e envolve numa solicitude particular os pobres e os doentes. Segundo a mais antiga tradição, para a Eucaristia se levavam as ofertas para os pobres e a partir dela eram distribuídas, levando aos mais necessitados, não apenas os dons materiais, mas o calor da comunhão fraterna. A caridade, concretizada a partir da Eucaristia, brota da união da Igreja ao mistério da Santíssima Trindade, por Jesus Cristo. Como dizia Santo Agostinho, “se vês a caridade, vês a Trindade”[5].

A caridade é, assim, consequência e expressão da fé, na esperança da sua plenitude. Enquanto somos peregrinos neste mundo, só na fé e na esperança o nosso coração se abre à caridade, que consiste em amar como Deus ama, mas só a caridade é anúncio e antecipação da vida eterna. Quando amamos como Deus ama, tocamos a eternidade. É a conclusão do Apóstolo Paulo no conhecido hino à caridade: “a fé, a esperança e a caridade permanecem as três, mas a maior entre elas é a caridade” (1Co. 13,13).

Porque se trata de um dom do Espírito Santo, o sujeito da caridade é tanto a Igreja como cada cristão. Ouçamos, mais uma vez, o Santo Padre: “o amor do próximo, radicado no amor de Deus, é um dever, antes de mais, para cada um dos fiéis, mas é-o também para a comunidade eclesial inteira, e isto a todos os níveis: da comunidade local, passando pela Igreja particular, até à Igreja universal na sua globalidade. A Igreja, enquanto comunidade, também deve praticar o amor”[6].

A predilecção pelos pobres

3. Sem esquecer a pobreza como atitude espiritual, que Jesus apresenta como uma das características do Reino – “bem-aventurados os que têm um coração de pobre” (Mt. 5,3), Jesus não esquece os pobres reais, incluindo nessa categoria os mais débeis da sociedade, os que mais precisam da solicitude dos irmãos. É uma concretização da parábola da ovelha perdida e ferida, que o pastor bom leva ao colo. Esta solicitude pelos mais débeis é uma manifestação maior da caridade e será o critério do último julgamento dos discípulos de Cristo: “Vinde benditos de Meu Pai, recebei a herança do Reino que está preparada para vós desde o início do mundo. Porque eu tive fome e deste-me de comer, tive sede e deste-me de beber, era um estrangeiro e acolheste-me, nu e vestiste-me, doente e visitaste-me, estava preso e vieste ver-me” (Mt. 25,34-36). “Na verdade, o que fizestes aos mais pequeninos dos meus irmãos, foi a Mim que o fizestes” (v. 40).

A caridade é participação do próprio amor de Jesus Cristo por nós, “Ele, que sendo rico, fez-Se pobre por vós, para vos enriquecer com a Sua pobreza” (2Co. 8,9). Há uma unidade inseparável entre o nosso amor a Deus e o amor dos pobres: “Se alguém vê o seu irmão em necessidade e lhe fecha o coração, como pode estar nele o amor de Deus?” (1Jo. 3,17).

A caridade praticada e não apenas afirmada, faz parte da verdade histórica da Igreja e é uma sua característica essencial. O Papa Bento XVI afirma: “Com o passar dos anos e a progressiva difusão da Igreja, a prática da caridade confirmou-se como uma das suas funções essenciais, juntamente com a celebração dos Sacramentos e o anúncio da Palavra: praticar o amor para com as viúvas e os órfãos, os presos, os doentes e necessitados de qualquer género, pertence tanto à sua essência como o serviço dos Sacramentos e o anúncio do Evangelho. A Igreja não pode descurar o serviço da caridade, tal como não pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra”[7]. Portanto, não pode haver programação pastoral que não coloque no centro, como foco irradiador, a prática da caridade, respondendo às exigências concretas do tempo que passa.

4. Porque é expressão e participação no amor salvífico de Jesus Cristo por todos os homens, a caridade cristã não conhece limites, nem fronteiras. Para o cristão todo o homem que precisa é seu irmão. Somos, felizmente, contemporâneos de grandes testemunhas desta universalidade da caridade, como a Irmã Teresa de Calcutá.

Esse é, também, o solene ensinamento do actual Papa: “A Igreja é a família de Deus no mundo. Nesta família não deve haver ninguém que sofra por falta do necessário. Ao mesmo tempo, porém, a caritas-ágape estende-se para além das fronteiras da Igreja; a parábola do bom Samaritano permanece como critério de medida, impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado «por acaso» (cf. Lc. 10,31), seja ele quem for. Mas, ressalvada esta universalidade do mandamento do amor, existe também uma exigência especificamente eclesial – precisamente a exigência de que, na própria Igreja enquanto família, nenhum membro sofra por passar necessidade. Neste sentido se pronuncia a Carta aos Gálatas: «Portanto, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos, mas principalmente para com os irmãos na fé» (6,10)”[8].

A caridade como prioridade pastoral

5. Por tudo quanto acabamos de dizer, a caridade deve ser a exigência a inspirar todas as opções pastorais da Igreja, em todos os âmbitos do seu ministério. Acolher o Amor e amar como Deus ama, é a essência do ser da Igreja.

Não vamos, agora, referir todas as concretizações da exigência da caridade na variada amplitude da acção da Igreja, restringindo-nos à caridade enquanto amor dos mais pobres e dos mais débeis. A Igreja encarna na sua acção pastoral a predilecção de Jesus pelos pobres e pelos pequeninos, os que terão prioridade no Reino de Deus. Não podemos, no entanto, esquecer que a caridade é um dom de Deus, acção do Espírito Santo na Igreja e no coração de cada cristão e que ela supõe, para brotar como fruto espontâneo, a vida sobrenatural em todas as suas expressões. Sem essa convivência íntima com Deus, o nosso amor de cristãos não irá além da bondade e generosidade naturais, da filantropia que se traduz em expressões de solidariedade. A caridade é tão sobrenatural como a adoração e a Eucaristia. É da intimidade com Cristo que a Igreja recebe o dom da caridade.

Dimensão pessoal e comunitária da caridade

6. Para tomarmos consciência das concretizações desta prioridade da caridade na vida cristã, convém ter em conta que a caridade é exigência para as pessoas e para a comunidade eclesial.

Como expressão pessoal, a caridade é o sinal, por excelência, da fidelidade do cristão. É um fenómeno de convivência e uma dimensão de vizinhança, é uma maneira de estar com os outros. Nenhuma instituição ou estrutura da caridade organizada, cobre todas as exigências do amor fraterno. Este surpreende-nos sempre no rosto sofrido do irmão em necessidade. É nesse rosto que nós descobrimos o rosto do próprio Cristo.

Mas a Igreja, como comunidade e Povo do Senhor, deve praticar a caridade. É nesse âmbito que surge a necessidade da caridade organizada, sem esquecer que nenhuma organização poderá substituir o calor do coração. Como dizia Santa Teresa de Lisieux, “o amor é o coração da Igreja”.

Como o Santo Padre nos recorda na Carta Encíclica, desde a era apostólica as comunidades cristãs organizaram-se para a prática do amor fraterno[9]. Desde os sete diáconos escolhidos para o serviço das mesas (Act. 6,5-6) ou a prática de os cristãos porem tudo em comum na Igreja de Jerusalém (Act. 2,44-45), muitas foram, ao longo dos séculos, as formas organizadas da caridade: diaconias, ordens religiosas, irmandades, misericórdias. Todas tinham em comum serem um serviço que permitia à Igreja, enquanto comunidade, alargar os horizontes do amor fraterno. A organização da caridade fez, desde o início, parte do rosto visível da Igreja como comunidade organizada.

Na nossa Igreja diocesana são hoje numerosas as instituições que corporizam esta organização da caridade, em nome da Igreja: a Caritas, as Misericórdias, os Centros Sociais Paroquiais, Confrarias e novas organizações que procuram responder a problemas novos da sociedade contemporânea, como por exemplo, a “Comunidade Vida e Paz” para apoio aos “sem-abrigo”.

Estas estruturas comportam um risco e encerram um desafio. O risco de se aterem a aspectos técnicos da assistência social; o desafio de todos os que nelas servem, terem uma vida cristã que lhes permita serem testemunhas do amor-caridade. Em todas estas estruturas deve ser claro que o amor é o coração da Igreja.

A caridade como expressão da presença da Igreja na cidade

7. Os problemas da pobreza e da ajuda aos mais débeis é, hoje, responsabilidade da sociedade como um todo e, particularmente, dos Estados. Trata-se da promoção de modelos de sociedade que implementem a justiça e que percebam que o amor é a principal força da construção de uma sociedade justa. A Igreja não pode, nem quer, assumir sozinha essa luta pela justiça, mas colabora, através dos cristãos e das instituições de caridade organizada, nessa busca de uma sociedade mais justa e fraterna. Convém relembrar, a este propósito, um lúcido texto da Encíclica “Deus é amor”: “A Igreja não pode nem deve tomar, nas suas próprias mãos, a batalha política para construir a sociedade mais justa possível. Não pode nem deve colocar-se no lugar do Estado. Mas também não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça. Deve inserir-se nela pela via da argumentação racional, e despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que sempre requer renúncias, não poderá afirmar-se nem prosperar. A sociedade justa não pode ser obra da Igreja; deve ser realizada pela política. Mas toca à Igreja, e profundamente, empenhar-se a favor da justiça, trabalhando para a abertura da inteligência e da vontade às exigências do bem”[10].

Graças a Deus, a nossa sociedade e o Estado Português, têm aceite esta cooperação com as Instituições da Igreja, na ajuda aos mais pobres e necessitados. As pessoas e as Instituições que promovem o amor fraterno, são uma forte expressão da presença da Igreja na Cidade.

Nenhum estádio avançado de justiça social dispensa a caridade. Ouçamos mais um texto de Bento XVI: “O amor – Caritas – será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem prescinde do amor, prepara-se para se desfazer do ser humano enquanto ser humano. Sempre haverá sofrimento a precisar de consolação e ajuda. Sempre haverá solidão. Existirão sempre situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo. Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarcar, torna-se, no fim de contas, uma instância burocrática que não pode assegurar o essencial de que o ser humano sofredor – todo o ser humano – tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal. Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade às pessoas carecidas de ajuda. A Igreja é uma destas forças vivas: nela pulsa a dinâmica do amor suscitado pelo Espírito de Cristo. Este amor não oferece aos seres humanos apenas uma ajuda material, mas também refrigério e cuidado para a alma – ajuda esta, muitas vezes, mais necessária que o apoio material. A afirmação de que as estruturas justas tornariam supérfluas as obras de caridade esconde, de facto, uma concepção materialista do ser humano: o preconceito segundo o qual o ser humano viveria «só de pão» (Mt. 4,4; cf. Dt. 8,3) – convicção que humilha a pessoa e ignora precisamente aquilo que é mais especificamente humano”[11].

Se o amor-caridade é uma força para a erradicação da pobreza e das desigualdades injustas, ele permanece, como expressão perene, em qualquer estádio de construção da sociedade, porque só a caridade faz a ponte entre o presente histórico e a eternidade.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca


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