CATEQUESE DO 2º DOMINGO DA QUARESMA |
“Um único mandamento: amar a Deus e ao próximo”
1. Segundo o ensinamento de Jesus, toda a Lei de Deus se resume num único mandamento: o do amor, a Deus e ao próximo. Jesus inaugura a visão definitiva da Lei de Deus, concebida como revelação e chamamento. O caminho de vida que, por Ele, Deus revela aos homens, é um caminho de perfeição, imitando a perfeição de Deus. A justiça, que é sinónimo de perfeição, de santidade, no Reino de Deus que Jesus prega e inaugura, é superior à dos escribas e fariseus: “Eu vo-lo digo: se a vossa justiça não vai além da dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt. 5,20). E depois de mostrar a excelência desta justiça do Reino, em comparação com a antiga, Jesus conclui, dirigindo-se aos que O querem seguir: “Vós sereis perfeitos como o vosso Pai Celeste é perfeito” (Mt. 5,48).
Jesus quer inaugurar um tempo novo, no caminho dos homens para a salvação. A referência deixa de ser Moisés e a sua Lei e passa a ser Ele e o caminho do Reino de Deus. “Ouvistes o que foi dito aos antigos. Eu porém digo-vos…” (Mt. 5,21). E para que não restem dúvidas, afirma-se como o único Doutor da Lei, o único Mestre: “Um só é o vosso Doutor, Jesus Cristo” (Mt. 23,10). O caminho da vida é só um e definitivo: seguir Jesus Cristo, na fé, e obedecer aos seus mandamentos. Paulo, um grande seguidor de Jesus Cristo, fará desta novidade o núcleo da sua doutrina sobre a Salvação. Só a fé em Jesus Cristo nos salva e não o cumprimento da Lei de Moisés.
Para evitar confusões, o evangelista São João nunca aplica às exigências do Reino de Deus a palavra Lei. Para ele, a Lei é sempre a de Moisés. Aos ensinamentos de Jesus ele chama mandamentos, ou seja, expressão da vontade de Deus, retomando, claramente, a compreensão da Lei como revelação e chamamento. O próprio Jesus se conduz, na Sua missão, pelo mandamento que recebe do Pai: “Eu não falo por Mim mesmo, o Pai que Me enviou, Ele é que me ordenou o que Eu devia dizer e anunciar. Eu sei que o Seu mandamento é a vida eterna” (Jo. 12,48-50). Imitando Jesus na Sua obediência à vontade do Pai, os cristãos encontram a vida, seguindo os seus mandamentos. “Tudo o que Lhe pedimos, recebemo-lo d’Ele, porque guardamos os seus mandamentos e fazemos o que Lhe agrada. Este é o Seu mandamento: acreditar no nome do Seu Filho Jesus Cristo e amarmo-nos uns aos outros, segundo o mandamento que nos deu” (1Jo. 3,22.23).
2. Os fariseus e os doutores da Lei, que se consideravam os detentores e intérpretes autênticos da Lei mosaica, aperceberam-se progressivamente desta ruptura inovadora do ensinamento de Jesus. O conflito era inevitável. Os Evangelistas situam uma grande parte do ensino de Jesus no contexto deste conflito. É exactamente no diálogo com um doutor da Lei que Jesus anuncia a nova síntese da Lei de Deus. “Um doutor da Lei (…) aproximou-se d’Ele e perguntou-Lhe: Qual é o primeiro de todos os mandamentos? Jesus respondeu: o primeiro mandamento é este: ouve, ó Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. E amarás ao Senhor Teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo mandamento é este: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não existe outro mandamento mais importante do que estes dois” (Mc. 12,28-31).
Na própria resposta Jesus exprime a novidade. O doutor da Lei interrogou-O sobre o primeiro mandamento, e Jesus disse-lhe também o segundo, porque o considera um só. E essa é uma novidade transformadora: o amor de Deus e o amor do próximo são um só. É impossível amar a Deus sem amar o próximo, e quem ama o seu próximo descobre o amor de Deus.
Deus amou-vos primeiro
3. Só é possível cumprir este mandamento do amor, porque Deus nos amou primeiro. Enquanto revelação e chamamento, este mandamento é o convite a que respondamos ao amor de Deus por nós, amando-O e amando os homens que Ele ama. Isto dá ao amor dos cristãos a qualidade e a densidade do amor trinitário de Deus. Deus é amor e só se pode conhecer, amando. “Aquele que não ama não conhece Deus, porque Deus é amor” (1Jo. 4,8). Segundo São João, na chamada “oração sacerdotal”, Jesus pede ao Pai que o Seu amor por nós seja a fonte do nosso amor. Só na experiência do amor de Deus aprendemos e podemos amar. “Pai Justo, o mundo não Te conheceu, mas Eu conheci-Te. Estes também reconheceram que Me enviaste. Tornei-lhes conhecido o Teu nome. E voltarei a torná-lo conhecido, para que o amor com que Me amaste esteja neles e Eu mesmo esteja neles” (Jo. 17,25-26).
É por isso que a fé é o fundamento do amor cristão, pois só ela é a garantia da caridade. Que Deus nos ama pode não se sentir, tem de se acreditar. A fé une-nos a Jesus Cristo e à Sua plenitude pessoal e é na intimidade com Jesus Cristo que descobrimos quanto Deus nos ama, quanto amou o mundo no Seu Filho Jesus Cristo. É uma ilusão pensar que a caridade, a dimensão sobrenatural do amor cristão, se pode viver só ao ritmo da natureza, com as naturais capacidades de amar. Só em Jesus Cristo nos sentiremos amados por Deus e desabrochamos para o desejo de amar como Ele nos ama. A prática do amor cristão faz uma unidade com a oração, de modo particular com a oração eucarística.
4. Mas poderemos nós imitar o amor de Deus, fazer dele o modelo e a força inspiradora das nossas expressões de amor? Não somos demasiadamente carnais e marcados pelo pecado, para sequer sermos sensíveis à maneira como Deus ama? Entre a maneira como Deus ama e a nossa experiência de amor, há, simultaneamente, uma grande distância e uma grande proximidade. Distância, marcada pela fragilidade do pecado, porque nos afastámos d’Ele, porque nos inebriámos com as nossas capacidades naturais de amar, considerando-as exclusivas e definitivas. Esta distância só a podemos vencer em Jesus Cristo, que nos reconduz à intimidade com Deus e nos familiariza com o amor de Deus. Mas há também proximidade: fomos criados por amor; os instintos de amor com que Deus enriqueceu a nossa natureza, chamam-nos ao amor na sua pureza original, o amor que Deus é. As nossas capacidades de amor, são sementes de Deus.
Para que sintamos que a fonte do nosso amor é o próprio amor de Deus, é preciso um longo caminho de purificação dos nossos instintos de amor (eros), até ao amor puro dom, que se dá para contemplar a sua própria beleza na beleza do outro. O próprio amor divino nos oferece o modelo e o ritmo dessa integração de todas as capacidades de amar no amor verdadeiro, puro dom (agapê). Também Deus amou o seu Povo como um apaixonado ama a sua amada e exprimiu a radicalidade desse amor no dom do Seu próprio Filho[1].
O amor dos irmãos e o amor de Deus
5. O amor de Deus é uma experiência e não apenas uma doutrina. Porque a Deus ninguém O viu, Ele manifestou-nos o Seu amor num gesto concreto, o dom do Seu Filho Jesus Cristo, que no realismo da entrega da Sua vida nos fez tocar o amor de Deus por nós. Na sua recente Encíclica “Deus é amor”, o Papa Bento XVI parte deste realismo de Jesus Cristo para nos fazer perceber o que é o amor. “Já no Antigo Testamento a novidade bíblica não consistia simplesmente em noções abstractas, mas na acção imprevisível e, de certa forma, inaudita de Deus. Esta acção de Deus ganha agora a sua forma dramática no facto de, em Jesus Cristo, o próprio Deus ir atrás da «ovelha perdida», a humanidade sofredora e transviada. Quando Jesus fala, nas suas parábolas, do pastor que vai atrás da ovelha perdida, da mulher que procura a dracma, do pai que sai ao encontro do filho pródigo e o abraça, não se trata apenas de palavras, mas de uma explicação do seu próprio ser e agir. Na Sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra si próprio, com o qual Ele se entrega para levantar o ser humano e salvá-lo – o amor na sua forma mais radical. O olhar fixo no lado trespassado de Cristo, de que fala João (cf. 19,37), compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Encíclica: «Deus é amor» (1Jo. 4,8). É lá que esta verdade pode ser contemplada. E começando lá, pretende-se agora definir em que consiste o amor. A partir daquele olhar, o cristão encontra o caminho do seu viver e amar”[2].
O amor de Deus vive-se e descobre-se nos actos concretos de amor. Este realismo exprime-o São João, na obediência aos mandamentos, algo de muito concreto para exprimir o amor. “Aquele que tem os meus mandamentos e os observa, é esse que Me ama e aquele que Me ama será amado por Meu Pai e Eu amá-lo-ei e manifestar-Me-ei a ele” (Jo. 13,21). “Naquele que guarda a Minha Palavra, o amor de Deus atingiu a perfeição. Assim sabemos que estamos n’Ele” (1Jo. 2,5).
E entre os mandamentos cujo cumprimento nos leva ao amor de Deus, sobressai o mandamento do amor fraterno. Os outros são o que de mais concreto há na nossa vida. “Dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros. Como Eu vos amei, amai-vos vós também uns aos outros” (Jo. 13,34). O amor dos irmãos é a expressão do amor a Deus. “Se alguém diz que ama a Deus e detesta o seu irmão, é mentiroso. O que não ama o seu irmão que vê, não poderá amar a Deus que não vê” (1Jo. 4,20).
A caridade fraterna é o critério realista do amor a Deus. É o gesto concreto, com a força de um sacramento, que nos faz mergulhar no mistério do amor divino. É um único amor e, por isso, amar a Deus e amar os irmãos são um único mandamento. O amor dos irmãos, que se nos impõe no concreto da existência, é o caminho para a descoberta do amor de Deus.
Santo Agostinho afirmou isto com clareza meridiana. Depois de recordar os dois mandamentos, que são um só, acrescenta: “O amor de Deus é o primeiro mandamento na hierarquia da obrigação, mas o amor do próximo é o primeiro na ordem da acção. Aquele que te deu o mandamento do amor nestes dois preceitos, não podia preceituar o amor do próximo de preferência ao amor de Deus; mas primeiramente preceituar o amor de Deus e depois o do próximo. Entretanto, tu que ainda não vês a Deus, merecerás contemplá-lo, se amas o próximo. Com o amor do próximo purificas o teu olhar, para que os teus olhos possam contemplar a Deus, como afirma claramente São João: se não amas o teu irmão que vês, como poderás amar a Deus que não vês?”.
E mais à frente acrescenta: “Começa, portanto, a amar o próximo. Reparte o teu pão com o faminto e dá pousada ao pobre sem abrigo, leva roupa ao que não tem que vestir e não voltes as costas ao teu semelhante. Que conseguirás praticando tudo isto? Então a tua luz brilhará como a aurora. A tua luz é o teu Deus; Ele é a aurora que despontará sobre ti depois da noite deste mundo. Esta luz não nasce, nem tem ocaso, porque permanece para sempre”[3].
A caridade como prioridade pastoral
6. A caridade torna-se, assim, uma prioridade pastoral. Ela é o critério da verdade da Igreja, da doutrina em que acredita e anuncia, das acções que desenvolve, do realismo da existência cristã como caminho de santidade, dinamismo que a faz tender para a perfeição de Deus. Só assim a Igreja será a “casa da comunhão” e o seu testemunho contribuirá para uma civilização do amor. O Santo Padre termina a sua Encíclica com este desafio: “O amor é possível, e nós somos capazes de o praticar, porque somos criados à imagem de Deus. Viver o amor e, deste modo, fazer entrar a luz de Deus no mundo: tal é o convite que vos queria deixar com a presente Encíclica”[4].
Todos os outros mandamentos do Senhor, que são o nome cristão da Lei, são concretizações da caridade, pois somos chamados a amar os nossos irmãos na complexa realidade do seu ser e da sua existência e iniciá-los nessa possibilidade de fazerem de todas as expressões da sua vida, caminho do amor de Deus.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca
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